Um
avanço fascinante
Autor(es): Derrick Rossi
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Veja - 04/07/2011
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O cientista americano explica como gerou
células-tronco em laboratório, um dos feitos mais promissores no combate a
doenças degenerativas como Parkinson e Alzheimer.
Quem entra no laboratório de pesquisa
do biólogo Derrick Rossi, na Universidade Harvard, não encontra nada de
especial. São bancadas com pipetas e tubos de ensaio, prateleiras atulhadas
de frascos de reagentes. Ali, trabalham nove pessoas - seis com
pós-doutorado, dois técnicos e um estudante, com orçamento anual de 1 milhão
de dólares. Nesse ambiente austero, Rossi conseguiu um feito espetacular:
criou um novo método, mais eficiente, menos perigoso e menos invasivo, de
reprogramar células adultas, fazendo-as voltar a um estado infantil, quando
têm a capacidade de se transformar em qualquer tecido do organismo humano. E
o caminho mais promissor para a cura de doenças como diabetes, Parkinson e
Alzheimer. Em seu minúsculo e despojado escritório, ele deu a seguinte
entrevista a VEJA.
O método com que o
senhor gerou células-tronco de pluripotência induzida animou os cientistas,
mas, antes de mais nada, o que são células-tronco de pluripotência induzida?
Essas células são conhecidas como iPS (a
sigla vem do nome em inglês: induced pluripotent stem cells) e foram geradas
pela primeira vez em laboratório pelo professor Shinya Yamanaka, da
Universidade Kyoto, no Japão. Em 2007, ele conseguiu pegar uma célula adulta
comum e introduzir nela quatro fatores, fazendo com que ela voltasse ao estado
pluripotente. O estado pluripotente é uma fase inicial da vida da célula,
quando ela ainda tem a capacidade de se diferenciar em qualquer um dos
diversos tecidos do organismo humano, como acontece com as células-tronco
embrionárias. É o feito mais sensacional que já vi na biologia celular em
toda a minha carreira. Mesmo hoje, revendo a pesquisa do professor Yamanaka,
fico impressionado com o volume de conhecimento biológico que envolveu. É um
trabalho brilhante.
Qual
a diferença entre as células pluripotentes do professor Yamanaka e as suas?
A diferença central está no método de
reprogramar as células. Nosso método é mais eficiente. A taxa de sucesso de
reprogramação celular do método de Yamanaka é de 0,1%. O nosso é pelo menos
100 vezes mais eficiente. Segundo ponto: nos experimentos do professor
Yamanaka, a reprogramação usa um vírus como, digamos, meio de transporte. O
vírus transporta os fatores para dentro da célula, alterando o seu genoma. O
problema é que o vírus é um vetor indesejável, perigoso. Ele pode ativar ou
desativar funções da célula, o que acaba resultando
Qual
a vantagem de evitar uma resposta antiviral e não alterar o genoma da célula?
A vantagem está na segurança e no
controle. O uso de vírus e a mudança do genoma são um risco. Podem levar as
células a um desenvolvimento descontrolado, desordenado, resultando em
câncer, o que inviabiliza seu uso
Mas
já houve experiências de criação de músculo
Criamos músculo como prova de
conceito, para verificar em termos práticos se nossas células iPS tinham
mesmo o potencial que esperávamos. É razoavelmente simples criar músculo em
laboratório porque envolve apenas um fator, e testamos nossa experiência com
músculo exatamente por ser simples. O conceito se comprovou. Isso é
importante porque fechamos todo um ciclo: de uma célula adulta - no nosso
caso, uma célula de pele - criamos uma célula pluripotente que direcionamos
para que se transformasse em uma célula muscular, sem a presença de vírus e
sem alteração no genoma. Agora, estamos trabalhando na geração de tipos mais
complexos de célula. Junto com Douglas Melton, diretor do instituto de
células-tronco de Harvard, tentamos criar células beta do pâncreas, que
produzem e liberam insulina. No meu laboratório, estamos trabalhando para
fazer células-tronco hemaropoiéticas, que dão origem ao sangue. Em parceria
com outros laboratórios de pesquisa, estamos tentando criar cardiomiócitos,
que são fibras do músculo cardíaco.
Uma das promessas do seu
trabalho é que, gerando células pluripotentes a partir de células do próprio
paciente, não haveria risco de rejeição. Em maio passado, cientistas da
Universidade de San Diego divulgaram um estudo mostrando que a rejeição
acontece do mesmo modo. O que o senhor achou desse trabalho?
Li esse estudo, mas acho que tem
sérios problemas. Primeiro, a experiência foi feita em camundongos, de modo
que não se pode simplesmente transferir suas conclusões para seres humanos.
Segundo, eles fizeram algumas escolhas no estudo que considero
cientificamente pobres e que, a meu ver, comprometem as conclusões. Não estou
dizendo que não há o que estudar sobre as iPS que conseguimos criar. Longe
disso. Há muito estudo a fazer. Há experiências, por exemplo, sugerindo que
as células carregam uma "memória" do que foram. Se isso for mesmo
verdade, uma célula da pele, mesmo depois de ser revertida ao estado de
célula-tronco pluripoteme, ainda guardará a memória de que um dia foi pele e
sua tendência será se diferenciar, de novo, em tecido da pele, e não em outro
tecido qualquer, como acontece com as células-tronco embrionárias. É uma
hipótese que precisamos estudar. Portanto, estou dizendo apenas que não vejo
validade científica na tese central dos colegas de San Diego. Mas, de
qualquer modo, a questão da rejeição ainda está um pouco longe. Não estamos
prestes a usar células iPS em pacientes.
Em
quanto tempo as células iPS poderão ser usadas em pacientes com a necessária
segurança?
Quando estamos na última fase de um estudo
clínico, é possível dar prazos. Na etapa atual, porém, falar em prazo é uma
irresponsabilidade. Na verdade, ninguém sabe. As células-tronco de embriões
humanos vêm sendo pesquisadas há uma década e meia, e só agora estão
começando a ser testadas
Qual o benefício mais
imediato que sua descoberta pode trazer para pacientes?
A curto prazo, as células iPS vão nos
permitir pesquisar sobre doenças que, por qualquer razão, são difíceis de
estudar. O diabetes tipo 1, por exemplo, é uma doença que surge com um ataque
autoimune massivo que, basicamente, mata as células beta, que fazem a
insulina. Quando a criança é diagnosticada com diabetes tipo
Como seu método
cria iPS semelhantes às células-tronco embrionárias, os cientistas poderão
deixar de usar embriões humanos em pesquisas, encerrando a polêmica moral e
religiosa sobre o uso de células embrionárias em laboratório?
Essas pesquisas seguem sendo
fundamentais. Toda vez que surge uma experiência criando algo parecido com
células-tronco embrionárias, a direita religiosa divulga a ideia de que vamos
poder dispensar o uso de embriões. Foi o que aconteceu em 2002, quando
Catherine Verfaille descreveu na revista Nature uma nova classe de
célula-tronco adulta com propriedades típicas de célula-tronco embrionária.
Também foi o que aconteceu em 2007, quando o próprio Yamanaka gerou células
pluripotentes. Agora, estão dizendo a mesma coisa. Se tivéssemos parado a
pesquisa com embriões depois do trabalho de Verfaille, Yamanaka não teria
feito o seu achado. Sem Yamanaka, nós não teríamos feito o nosso. As
celulas-tronco embrionárias são a medida-padrão das pesquisas em biologia
celular. Sem elas, estaríamos trabalhando no escuro. A direita religiosa diz
que é imoral usar embriões em pesquisas porque isso equivale a acabar com uma
vida humana. Creio que é o contrário. Os embriões estão em clínicas de
fertilização e foram descartados. O destino deles é a lata de lixo. É um
imperativo moral que sejam aproveitados em pesquisas para o bem da
humanidade. Imoral é jogá-los no lixo.
As células-tronco
apareceram como a grande promessa da ciência, mas, como ainda não saíram do
laboratório para o hospital, criou-se a sensação de fracasso. O que deu
errado?
A ciência demora - e é bom que demore, em
nome da segurança. O transplante de medula óssea levou décadas. Nos anos 50,
quando Donnall Thomas fez o primeiro transplante, que lhe valeu o Nobel, não
sabíamos nada sobre rejeição. O primeiro transplante foi feito entre gêmeos
idênticos. Aos poucos, fomos entendendo o processo. Hoje, são realizados
cerca de 30000 transplantes de medula óssea por ano nos Estados Unidos, mas,
para chegar a isso, foram anos e anos de estudo. Temos todos os motivos para
estar otimistas com as células iPS, mas não vamos ignorar a realidade. Tenho
recebido muitas cartas e e-mails de gente que tem um amigo, um filho, o
marido doente, perguntando se as iPS podem ser usadas para ajudá-los. Não
chegamos lá ainda. A pior coisa que pode acontecer é a terapia ser aplicada
cedo demais e matar pacientes. Isso faria parar tudo por anos a fio.
Precisamos dar tempo à ciência.
Em algum momento, a
terapia-celular vai criar órgãos humanos inteiros, como um rim ou um fígado,
ou isso é ficção científica?
Creio que será possível, sim. Já fazemos
isso com o sangue. O sangue, embora não pareça, é um tecido. Quando
transplantamos células que formam sangue - as chamadas células
hematopoiéticas - de uma pessoa para outra e reconstruímos o tecido, estamos
criando sangue. Talvez o sangue seja um tecido especialmente fácil de criar
porque não tem veias nem nervos, mas o fato é que pequenos organoides são
desenvolvidos toda hora. Não são órgãos inteiros, mas têm as propriedades de
um órgão. A criação de um rim ou um fígado, contudo, é coisa para longo
prazo. A ideia é chegarmos ao momento em que poderemos pegar uma
célula-tronco da pele de um paciente com um grave problema hepático, digamos,
e a partir dela criarmos um fígado novo. Será o auge da terapia celular, mas
é para longo prazo. Não sabemos como criar um fígado. É preciso reproduzir
vasos, nervos, toda uma estrutura. É difícil chegar lá. A vida é complexa,
mas estamos cada vez mais perto.
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